A
GUERRA DE PRINCESA
Rostand Medeiros
Esta guerra (e
não há nenhum exagero de assim
chamá-la), foi pródiga de
episódios interessantes e cruéis, onde tudo
começou através de
discórdias políticas e econômicas,
envolvendo poderosos coronéis do
interior do estado e o governador eleito da Paraíba em 1927,
João
Pessoa Cavalcanti de Albuquerque.
João Pessoa
discordava da forma como o grupo político que o elegera
conduzia a política paraibana, onde era valorizado o grande
latifundiário de terras do interior, possuidores de grandes
riquezas
baseadas no cultivo do algodão e na pecuária.
Estes “coronéis” atuavam
através de uma estrutura política arcaica, que se
valia entre outras
coisas do mandonismo, da utilização de grupo de
jagunços armados, da
conivência com grupos de cangaceiros e outras
ações as quais o novo
governador não concordava.
Entre os embates
ocorridos, podemos listar uma maior perseguição
do
governo estadual aos grupos de cangaceiros e a cobrança de
taxas de
exportação do algodão. Por esta
época, os coronéis exportavam o produto
principalmente através do principal porto de Pernambuco, em
Recife,
provocando enormes perdas de divisas tributárias para a
Paraíba.
Procurando evitar esta sangria financeira e efetivamente cobrar os
coronéis, João Pessoa implantou diversos postos
de fiscalização nas
fronteiras da Paraíba, irritando de tal forma estes
caudilhos, que
pejorativamente passaram a chamar o governador de
“João Cancela”.
Os embates
políticos entre o governador e os coronéis foram
crescendo.
A maior liderança entre estes poderosos, sem
dúvida foi o coronel José
Pereira Lima, verdadeiro imperador da região oeste da
Paraíba, na área
da fronteira com Pernambuco, tendo como base, a cidade de Princesa. Do
embate entre estes dois homens resultou em um dos maiores conflitos
armados do Brasil Republicano.
A contenda teve
início em 28 de fevereiro de 1930, quando ocorreu a
invasão da então vila do Teixeira (PB), por parte
da polícia paraibana,
com o aprisionamento da família Dantas, ligada por profundos
laços de
parentescos e interesses ao coronel José Pereira.
Os primeiros lances do
conflito
Apesar de governador
João Pessoa não contar com o apoio do
Palácio do
Catete, onde o titular, Washington Luís, não
viabilizou uma efetiva
ajuda as forças policiais paraibanas, o
mandatário paraibano foi à luta.
Com o apoio discreto, mas
efetivo, do Presidente da República e dos
governadores de Pernambuco, Estácio de Albuquerque Coimbra,
e do Rio
Grande do Norte, Juvenal Lamartine de Faria, o coronel José
Pereira
decidiu criar o “Território Livre de
Princesa” com absoluta autonomia,
separando-se durante o período do conflito do restante do
estado da
Paraíba.
Princesa se tornou uma
fortaleza inexpugnável, resistindo palmo a palmo
ao assédio das milícias leais ao governador
João Pessoa. O exército
particular do coronel José Pereira era estimado em mais de
1.800
combatentes, onde diversos desses lutadores eram egressos das hostes do
cangaço e muitos eram desertores da própria
polícia paraibana.
No lado do presidente
João Pessoa, suas tropas estavam sob o comando do
Coronel Comandante da Polícia Militar da Paraíba,
Elísio Sobreira, do
então Delegado Geral do Estado, Severino
Procópio, e do Secretário de
Interior e Justiça, José Américo de
Almeida. Na tentativa de desbaratar
os sediciosos de Princesa, estes comandantes dividiram os efetivos
policiais, compostos por cerca de 890 homens, em colunas volantes.
No povoado de Olho
D’Água, então pertencente ao
município de Piancó
(PB), estava aquartelado o comando geral de
operações da polícia
paraibana, que decidiu enviar à Princesa uma de suas colunas
volantes,
conhecida como “Coluna Oeste”. Esta coluna era
comandada pelo Tenente
Raimundo Nonato, que tinha entre seus principais comandados o valente
sargento Clementino Furtado, mais conhecido como Clementino
Quelé, ou
“Tamanduá Vermelho” (por ser branco e
ficar “avermelhado” quando
nervoso). Quelé era a valentia em pessoa, calejado nas lutas
do sertão,
podia se vangloriar de possuir no seu
“currículo”, mais de vinte
combates contra Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Foi
a volante
de policiais comandadas por Quelé, a primeira a entrar em
Mossoró, em
13 de junho de 1927, perseguindo Lampião e seu bando, logo
após este
ter tentado invadir esta importante cidade potiguar.
Composta de valentes
combatentes, foi para a "Coluna Oeste" que o comando designou uma
missão especial.
O ataque ao
Casarão dos Patos
Em Princesa, entre um dos
mais importantes líderes das tropas locais
estava o fazendeiro Marçal Florentino Diniz, poderoso e
influente
agro-pecuarista da região, que juntamente com seu filho,
Marcolino
Pereira Diniz, eram parentes e pessoas da inteira confiança
do coronel
José Pereira. O coronel Marçal Diniz
possuía no então distrito de Patos
de Princesa, a 18 quilômetros da cidade, uma fazenda
localizada no sopé
da grande serra do Pau Ferrado, o segundo ponto mais elevado da
Paraíba, com cota máxima em torno de 1.120 metros
de altitude e foi
para esta fazenda que o comando da polícia paraibana ordenou
que
Clementino Quelé atacasse a casa grande do poderoso coronel.
O Casarão dos Patos de Princesa, em Irerê, Paraíba
Este episodio
é conhecido como o “Fogo ou Batalha do
Casarão dos Patos”.
A idéia deste
ataque visava dividir as forças do coronel José
Pereira,
que teria de retirar homens da frente de combate de Teixeira, para
socorrer os familiares da família Diniz que estavam no
casarão, bem
como formar com as reféns uma espécie de
cordão de isolamento, um
escudo humano, que objetivava garantir a segurança dos
militares.
Pensavam que, agindo assim, nenhum defensor de Princesa ousaria atirar
nos combatentes do governo paraibano.
Outra teoria seria a de
levar as mulheres como prisioneiras, ou reféns,
para a cidade de Paraíba do Norte (atual João
Pessoa) e forçar os
comandantes de Princesa a alguma espécie de
negociação.
No dia do ataque, 22 de
março de 1930, Quelé e seus policiais, em
número estimado entre sessenta para alguns, e entre setenta
a cem
homens para outros, seguiram atravessando a zona urbana da pequena vila
de Alagoa Nova (atual Manaíra-PB) e daí subiram a
grande Serra do Pau
Ferrado. Ao passarem pela propriedade de Antonio Né, pessoa
ligada à
família Diniz, no homônimo Sítio Pau
Ferrado, assassinaram um cidadão
por nome Silvino, depois, desceram a serra.
Não havia
muitos defensores pertencentes aos grupos do coronel José
Pereira, ou de Marcolino Diniz e a força policial de
Quelé ocupa o
local sem maior oposição. Na casa estavam entre
outras pessoas, às
mulheres de Marcolino Diniz, Alexandrina Diniz (também
conhecida como
Dona Xandu, ou Xanduzinha) e a de Luís do
Triângulo, Dona Mitonha. Luís
do Triângulo era um dos mais valentes e destacados chefes dos
combatentes de José Pereira.
A batalha sangrenta
Neste interregno, o grupo
de combate comandando por Marcolino encontrou
um soldado da polícia de nome Zeferino, o qual seguia com
uma mensagem
do Sargento Quelé ao Delegado Geral do Estado, Severino
Procópio,
informando da ação contra o casarão.
José Pereira e
Marcolino Diniz recebem a notícia da prisão de
seus
familiares. Tomam esta ação como um acinte, uma
falta de respeito e
preparam o contra ataque. Ordenam que parte de suas tropas que
combatiam as forças policiais do governador João
Pessoa na região de
Tavares, se deslocasse para Patos de Princesa e ordenam que os homens
levem farta munição. Outros combatentes conclamam
moradores da região
para o ataque, enaltecendo a covardia de Quelé, que usava
mulheres como
escudos. Este chamamento dos líderes de Princesa e de seus
homens
encontra eco entre membros das comunidades de Princesa e Alagoa Nova e
estes decidem seguir com o grupo que vai retomar o
“Casarão dos Patos”.
Na noite do segundo dia
após o bem sucedido ataque de Quelé ao
casarão
da família Diniz, a situação permanece
inalterada. Segundo relatos dos
reféns, os soldados, com raras
exceções, se portaram de forma vândala
e
arrogante durante a ocupação.
Enquanto isso os
combatentes de Princesa vão discretamente fechando o
cerco ao casarão. Aparentemente, por falta de
comunicação com seus
comandantes, Quelé não abandonou a
posição e levou seus prisioneiros.
Outros acreditam que ele logo percebeu que estava cercado e esperou o
inevitável.
O certo é que
na manhã do terceiro dia de ocupação,
o céu se
apresentava nublado, os defensores do casarão estavam
tranqüilos,
apesar da tensão existente na região. Alguns
esperavam o café, outros
até jogavam uma improvisada partida de futebol
(possivelmente com uma
bola de meia), no pátio defronte a casa. É quando
o primeiro tiro é
detonado em um soldado que vinha do Sítio Pedra e trazia um
carneiro
para abate, aí tem início um inferno no
“Casarão dos Patos”.
A polícia
estava cercada na casa, se defendendo como podia, o sargento
Quelé vai animando seus policiais em meio a uma intensa
troca de tiros
e insultos entre as forças combatentes.
Marcolino Diniz,
à frente dos seus homens, está com o
“cão no couro”,
comandando, disparando e mandando buscar cachaça nas bogedas
da pequena
vila de Patos de Princesa para “esquentar” seus
“cabras”. Esta cachaça
era trazida em sacos, distribuída francamente entre seus
combatentes.
Até hoje se comenta na região como os
distribuidores da bebida
terminaram os combates totalmente embriagados e sem dispararem um
só
tiro.
O tiroteio é
cerrado. Colocar a cabeça muito exposta nas janelas do
casarão é motivo para que algum policial se torne
um alvo fácil. Já os
homens de Diniz continuam disparando sem cessar. Eles estão
espalhados
em todo o perímetro, protegidos por árvores,
pedras, pelos muros e
paredes das poucas casas vizinhas.
O combate prolongou-se
até as dezesseis horas do mesmo dia, quando a
polícia praticamente estava sem
munição e seus disparos tornam-se
esparsos. É quando os homens de Marcolino, aproveitando uma
forte chuva
que desabava e a existência de um canavial nas
imediações do casarão,
partem para o assalto final.
Durante a
invasão é travado um forte combate corpo a corpo
em cada uma
das dependências da casa. Gritos, pancadas, socos,
pontapés, dentadas,
tiros, facadas e sons de lutas ocupam o ambiente. Os homens de
Quelé
procuram à fuga, mas estando o casarão cercado,
muitos são abatidos
impiedosamente pelos combatentes de Marcolino.
Alguns policiais fugiam,
feridos ou não, pelo mesmo canavial que serviu
de abrigo para os atacantes e de lá seguiam para a serra do
Pau
Ferrado. Nesta fuga, muitos combatentes se cruzavam, às
vezes cara a
cara, dentro do canavial e tiros ou facadas eram desferidas a curta
distância.
Marcolino,
atiçado pela bebida e já dentro do
casarão, prometia aos
gritos “vou sangrar todo mundo, até
Xandu” que no seu entendimento de
valentão do sertão, com um pensamento
extremamente machista, imaginava
que a sua mulher já havia sido estuprada e aí
só “sangrando para limpar
o corpo”. Mas Xandu e as outras mulheres estavam bem e foram
preservadas por Quelé e seus homens. Todas estavam em um
quarto,
acompanhadas de um soldado ferido na perna, que conseguira desarmar uma
bomba (ou granada?), que o sargento Quelé colocara no
recinto. O
soldado salvou a vida das reféns, sendo igualmente salvo
pelas mulheres
de ser impiedosamente sangrado por Marcolino e seus
“cabras”.
Após isto,
Marcolino e seus homens seguiram pelos vários recintos do
“Casarão dos Patos”, chacinando os
policiais que não fugiram. Dos
militares que lá dentro se encontravam, não
sobrou nenhum vivo, pois
até o soldado que havia salvado as mulheres, morreu no mesmo
dia,
devido aos ferimentos, quando era transportado para a vizinha cidade
pernambucana de Triunfo.
Segundo relatos dos
moradores da região, havia até recentemente, em
alguns quartos da casa, registros de mãos
ensangüentadas nas paredes,
mostrando a agonia deste dia terrível.
Quanto a
Quelé, vendo-se acossado pelos homens de Marcolino e
escutando
o próprio caudilho dos Patos de Princesa gritando dentro do
casarão que
“queria pegar Clementino e matá-lo
sangrado”, pulou do andar superior,
juntamente com dois soldados e juntos fugiram em
direção ao canavial.
Já era noite quando conseguiram chegar à serra do
Pau Ferrado, depois
seguem para Alagoa Nova e ao encontro das forças de
João Pessoa. O
restante dos militares que escapou com vida embrenhou-se em
território
pernambucano.
O resultado do combate
e o fim da guerra
Das forças de
José Pereira e Marcolino Diniz houve apenas uma baixa, um
senhor de nome Sinhô Salviano, possivelmente sob efeito da
cachaça,
desprezou as ordens e ficou sob a mira dos soldados.
Para alguns
pesquisadores, as forças paraibanas perderam mais da metade
do efetivo, mas segundo os relatos que se perpetuam na
região, contados
por aqueles que participaram do conflito e transmitidos para seus
descendentes, foram mortos em torno de cinqüenta policiais,
sendo seus
corpos enterrados em uma vala comum nas proximidades do
casarão. Os
equipamentos bélicos dos policiais mortos foram recolhidos
pelos
combatentes de Princesa para reforço de arsenal.
Houve outros
episódios sangrentos e terríveis na Guerra de
Princesa,
mas após a morte, em Recife, do governador João
Pessoa e a conseqüente
eclosão da Revolução de 30, o conflito
em Princesa acabou, era o dia 26
de julho de 1930.
O coronel José
Pereira Lima organizou a defesa dos seus domínios de
forma impressionante, provocando baixas estrondosas à
força pública
paraibana durante os quatro meses e vinte e oito dias que durou sua
resistência.
Princesa não
foi conquistada pela polícia paraibana. Após a
eclosão da
Revolução de 30, tropas do exército,
de forma tranqüila, ocuparam a
cidade.
O coronel José
Pereira e muitos dos que lutaram com ele fugiram da
região e a família Diniz se retraiu diante do
novo sistema
governamental imposto. O tempo dos caudilhos do sertão
estava chegando
ao fim, pelo menos naquele formato utilizado por José
Pereira.
Com o fim da guerra, a
fortuna da família Diniz ficou seriamente
comprometida. O combate e, principalmente, a ira dos soldados, destruiu
tudo. Canaviais, engenhos de rapadura, moendas, casas e outros bens
foram alvo da vingança dos fardados, quase nada escapou.
Mesmo com as
perseguições sofridas após o fim da
guerra, todos os anos
Marcolino Diniz e sua gente, comemoravam o aniversário da
retomada do
casarão com muita festa.
Marcolino sempre foi um
homem controverso, valente, prepotente, astuto
e sagaz. Era proprietário das fazendas Saco dos
Caçulas e Manga, onde
diversas vezes Lampião descansava dos combates. Esta
polêmica amizade
entre Marcolino e Lampião é bem retratada em um
episódio; em 30 de
dezembro de 1923, Marcolino, juntamente com seu guarda-costa conhecido
por “Tocha”, por conta de uma briga, matam o
então magistrado da cidade
de Triunfo (PE), o Dr. Ulisses Wanderley. Marcolino fica ferido e
é
feito prisioneiro na cadeia pública local. Seu pai, o
coronel Marçal,
recorreu aos préstimos do cangaceiro a fim de libertar o
filho. Não
demora muito e um grupo armado, com um número de homens
estimado em
torno de 100 a 150 homens, retira tranqüilamente o prisioneiro
ferido
da cadeia.
Marcolino e a sua
adorável Xandu, continuaram unidos até a morte,
tendo
seu amor sido imortalizado em 1950, por Luís Gonzaga e
Humberto
Teixeira, com a música “Xanduzinha”.
Marcolino nasceu em 10 de agosto
de 1894 e faleceu em Irerê, em 21 de dezembro de 1980, com 86
anos,
conforme está inscrito em sua lapide, na igreja deste
atraente lugarejo.
Já o sargento
Clementino Quelé sobreviveu à Guerra de Princesa
e ainda
teria fôlego para perseguir, no ano de 1936, o bando do
cangaceiro
Virgínio Fortunato da Silva. Conhecido como
“Moderno”, foi cunhado de
Lampião, homem de sua mais alta confiança, que
neste ano investiu
contra a região conhecida como “Tigre
paraibano”, atacando várias
fazendas na área próxima a cidade de Monteiro.
Quelé, possivelmente
pelo analfabetismo, nunca passou da patente de sargento, tendo morrido
idoso na cidade paraibana de Prata. Coincidentemente, Quelé
também foi
lembrado em uma música de Luís Gonzaga intitulada
“No Piancó”.
Quem visita atualmente a
antiga Patos de Princesa, atual Irerê, com
suas casas antigas e bem preservadas, nem imagina que o carcomido e
arruinado casarão existente no fim da rua principal, foi
palco de
tamanho conflito.
Mesmo em
ruínas, o casarão impressiona pela
imponência da sua
estrutura, pela grandiosidade da sua construção.
Nele existe um andar
superior, com dois sótãos independentes,
vários quartos e dependências,
sendo um exemplo do poder emanado pelos coronéis da
região. Em meio ao
silêncio atual, se o visitante puxar pela
imaginação, é possível
ouvir
os sons da batalha ali ocorrida no longínquo ano de 1930.