AUTOBIOGRAFIA DE JOÃO PESSOA
Auto biografia de João Pessoa, narrada aos participantes da caravana de propaganda pela Aliança Liberal, na ocasião do banquete que lhe foi oferecido a bordo do Orania, atracado no Recife, em 24 de janeiro de 1930.
"Essa singela narrativa feita aqui, neste ambiente íntimo, servirá de exemplo aos moços, de incentivo aos homens de meia idade e de registro aos que já a ultrapassaram.
"Tinha oito irmãos e, na qualidade de mais velho, quando desaparecesse o progenitor, cabia-lhe, como única herança, orientar a família. Torturado pela necessidade, um dia foi obrigado a abandonar a casa paterna. Após incansáveis esforços, inenarráveis padecimentos, conseguiu, tempo depois, ingressar num estabelecimento militar da República. Sem qualquer adjutório, sem, ao menos, uma pequena mesada, as suas necessidades, se não eram maiores, eram; em todo caso, prementes. Inúmeras vezes não tinha 200 réis no bolso para ir à cidade em visita a um parente, que muito estimava, o qual, mais tarde, quando teve o poder nas mãos, grandemente o auxiliou.
"Um dia, porém, em virtude de um movimento perturbador da ordem militar, a escola foi fechada. Todos os alunos expulsos a bem da moralidade administrativa. Voltou à casa paterna. Lá, as vicissitudes ainda mais aumentaram, e quis partir para o norte. Nesse entrementes, regressa à Escola anistiado e, dois anos depois, é novamente afastado do estabelecimento de ensino, em conseqüência de um novo movimento revolucionário. Foi então deportado. Percorreu as costas do Brasil a bordo do Carlos Gomes, que levou 45 dias do Rio de Janeiro ao Pará. Tinha por leito o tombadilho do navio. Não tinha sido permitido conduzir a bagagem. Era obrigado a fazer das botinas, enquanto existiram, o seu travesseiro. (Pelo visto lhe roubaram as botinas. enquanto dormia).
"Chegando ao Pará, as dificuldades da vida se lhe tornaram maiores, sendo que a estremecida mãe jamais deveria ter conhecimento da situação miserável em que o filho se encontrava. Passava fome, dormia nos jardins e, afinal, quando a fome era mais cruenta, tinha hospitalidade no coração de uma generosa preta, que lhe dava um pouco do que fazia para vender, à porta de sua pobre casinha. Essa preta o acolheu com verdadeiro amor maternal, compreendendo que tinha fome, dividia carinhosamente com ele um pouco do seu alimento, adquirido com o produto de suas vendagens. Assim, dias e meses se passaram.
"Foi forçado a abandonar a vida militar, empregando-se no comércio em uma casa de estivas. Logo no primeiro mês adoeceu, sendo recolhido a um hospital, onde ficou abandonado e à morte. A família, tendo ciência do que lhe sucedia, resolveu telegrafar à casa comercial, pedindo que pagasse as despesas do seu ex-empregado até o seu Estado. Regressou a bordo de um navio do Lloyd, trancado em um camarote. Chegando ao porto do destino, mãos carinhosas arrancaram o infeliz, já desalentado, de dentro do beliche. Levado à casa, ainda sofreu mais de seis meses e, restabelecido pretendia voltar novamente para a Amazônia, a fim de cuidar de vida nova, quando a boa sorte lhe bate à porta.
"Fora nomeado pelo parente já referido para exercer uma função pública na Faculdade de Direito do Recife. Aí matriculou-se formando-se mais tarde. Veio a fortuna. Quando esta lhe sorriu, não olvidou a preta que o socorrera na desgraça, mitigando-lhe a fome. Infelizmente, não mais a encontrou. Continua, entretanto, guardando dessa pobre velhinha a mais viva lembrança, como sinal de imorredoura gratidão.
"Quereis saber de quem se trata? o humilde candidato à vice-presidência da República, que nesta hora vos fala".
(João Pessoa, edição do Governo da Paraíba, julho de 1930, p. 53).
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